Ensaio: Ideologia da Leitura

Eu sei ler. Eu sei ler? O que é ler? No texto “Como Pinóquio aprendeu a ler”, o autor Alberto Manguel traz a vontade do personagem de Carlo Collodi, o Pinóquio, em se tornar “um menino de verdade”, tendo como caminho para essa transformação o que Manguel chama de “saga da educação de um cidadão”, que se daria através da leitura. Essa saga seria mediada pela Escola, lugar de aprender a ler, mas esse aprendizado não é puramente voluntário, é uma espécie de pagamento do cidadão à sociedade, um acordo de cavalheiros, em que a sociedade fornece condições básicas de sobrevivência e, em contrapartida, o cidadão aprende a ler. Mas, ler apenas o suficiente para interpretar um conjunto de regras daquela, e não para entender o suficiente para questioná-la, e deixar de fazer parte de um quadro geral e pretensamente uno, e passar a questionar o externo através de si, e se separar do senso comum, e ousar morder a mão de quem o alimenta.

Como significação de “aprender a ler”, Manguel a coloca se dando em três pontos:

Primeiro, o processo mecânico de aprender o código da escrita na qual está codificada a memória de uma sociedade. Segundo, o aprendizado da sintaxe que comanda esse código. Terceiro, o aprendizado de como as inscrições nesse código servem para conhecer de maneira profunda, imaginativa e prática nossa identidade e a do mundo que nos cerca. (MANGUEL, 2009, p. 41).

O autor ainda coloca que, este último estágio do aprendizado, Pinóquio jamais alcançará devido às tentações oferecidas pela sociedade, a zombaria dos medíocres – que tendem a fazer de Pinóquio mais um – e a orientação distante dos preceitos morais do indivíduo – visto que a orientação corrente, em especial por parte dos governos, tende a ver na leitura, com razão, justamente a liberdade rebelde que poderia levar o indivíduo a questionar o sistema.

Mas há ainda uma outra questão que tem se mostrado como uma grave barreira ao alcance das verdadeiras leituras, aprendizado que nÓs Pinóquios, ao que tudo indica, não alcançaremos de fato. A rivalidade entre tempo e produtividade. É muito visado o produto mas não necessariamente as condições de obtê-lo. É o que ocorre inclusive no sistema de ensino, como se apresenta no texto “Sociologia e filosofia nas escolas de ensino médio: ausências, permanências e perspectivas”, de Adélia Maria Miglievich Ribeiro, Dalton José Alves, Renata Saul e Virgílio de Lima Pereira, relatando a pouca importância dada às referidas disciplinas, pois são postas e retiradas do currículo escolar de acordo simplesmente com a vontade dos governos em vigor. E ainda assim, quando das suas presenças, estão sujeitas, quanto às diretrizes, à ideologia do governo vigente. O fato é que estas são disciplinas de extrema importância para o desenvolvimento do pensamento crítico, que é exigido nas universidades, mas não fundamentado no ensino que o antecede. Primeiro, essa instabilidade acarreta rupturas de correntes de pensamento, que hora têm seu sustentáculo intelectual, hora não mais. E segundo, mesmo agora, com a presença assegurada no ensino, é apenas no ensino médio, ou seja, é negado um processo de maior consistência ao passo que o estudo dessas disciplinas é relegado apenas ao ensino imediatamente anterior ao acadêmico, assim, na universidade é exigido um pensamento crítico bem constituído, porém os meios que possibilitariam tal capacidade são apresentados de forma extremamente superficial, fato observado e agravado inclusive pela carga horária disponibilizada para abordagem dessas disciplinas em relação a outras. Paralelo a essa questão, do tempo escolar de exposição a essas disciplinas, surge ainda outro ponto, algo que atinge diretamente a vida acadêmica. O tempo pessoal disponível para dedicação aos estudos. Mais um agravante à situação “pinoquiana” de dificuldade em alcançar o terceiro estágio de aprendizado.

Ao chegar à fase adulta, a sociedade cobra do indivíduo autossustentabilidade, surgindo com isso novas obrigações, como arcar com o próprio sustento, moradia e cuidados básicos. O que consome tempo considerável, a ser subtraído do tempo antes disponível ao estudo. Temos uma disputa entre obtenção satisfatória do alimento do corpo ou obtenção satisfatória do alimento da alma. O paradoxo é que a escola não orienta a leituras profundas para exercitar o pensamento crítico quando temos tempo à disposição, e a universidade exige tal pensamento e dedicação, quando já não podemos dedicar o tempo necessário para um aprendizado de qualidade, de profundidade. Manguel (2009, p. 48) diz que “o pensamento requer tempo e profundidade, as duas qualidades essenciais do ato de ler”. Dito isso, podemos nos questionar: estamos realmente lendo? Provavelmente não. Então, o que estamos produzindo com nossas leituras superficiais?

É bem verdade que há material de qualidade sendo produzido, mas quem está tendo condições de produzi-los? Temos universidades que ainda possuem cursos de graduação com grades curriculares pensadas para quem ainda pode se dedicar única e exclusivamente ao estudo. “Cursos de elite”, pois apenas uma pequena parcela dos estudantes podem ter essa dedicação total; “cursos para elite”, pois perpetuam o status de dificuldade do aprendizado, mas não um status de dificuldade que se refere ao esforço realmente necessário nessa empreitada, mas a um esforço sobre-humano que afasta e intimida. O que limita enormemente o potencial de produção intelectual, por que o indivíduo que possui esse precioso tempo disponível, pode não aproveitá-lo sabiamente, mas o indivíduo que deseja de fato tornar frutífero o ato intelectual, factualmente precisará de tempo, do qual pode não dispor. E nesse ponto talvez esteja a questão de uma ideologia. Não será proposital a manutenção de uma estrutura curricular, escolar e universitária, que perpetua um status quo, pois permite o surgimento apenas de poucos questionadores?

Alípio de Sousa Filho (2003, p. 2) aponta, sobre ideologia, que

Anterior a toda outra coisa, ela assegura, em qualquer sociedade, que a ordem social não desabe enquanto também uma Ordem Simbólica. Resultado que a ideologia consegue obter ao assegurar – através de representações – crenças que conferem à ordem – socialmente construída, arbitrária e convencional – uma aparência de natural, inevitável, universal, sagrada. (SOUSA FILHO, 2003, p. 2).

Então, parece não apenas proposital, mas também consentida. Amargamos um processo superficial de leitura não apenas participando, mas reproduzindo. A questão é: como romper com algo que já se tem como natural, que já faz parte de um inconsciente social?

Se “A ideologia é propriamente esse discurso da cultura sobre os sujeitos, tornando-se o próprio modo de operar da cultura – é sua língua – enquanto um sistema de convenções, mas cuja natureza e estrutura profunda os sujeitos ignoram” (SOUSA FILHO, 2003, p.4, grifo do autor), significa que já nos apropriamos do mal. Poderíamos então pensar que se, por hora, ignoramos, também se aplica que em algum momento poderemos examiná-la; que esse processo superficial de leitura, apenas não foi questionado, e se foi, ocorreu de forma insuficiente e ineficaz, permitindo a manutenção das práticas que o asseguram. Porém, se a ideologia se mantém por ser fruto do inconsciente, será que colocá-la em foco, trazê-la à consciência, seria suficiente para iniciar um processo de desconstrução das práticas que a sustentam e legitimam? A resposta é incerta, particularmente, porque não levanta questões que envolvem somente o âmbito do estudo, mas atinge a outros setores e aspectos da sociedade, como trabalho, com suas questões e legislações, assim como o lazer, com seus benefícios e custos; mas é preciso tentar, especial e justamente, porque incide sobre todos os aspectos da sociedade:“(…) o deficit de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não lemos os outros.” (COUTO, 2011, p. 93).

 

REFERÊNCIAS

COUTO, Mia. Quebrar armadilhas. In: (______) E se Obama fosse africano?: e outras intervenções. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

MANGUEL, Alberto. Como Pinóquio aprendeu a ler. In: (______) À mesa com o chapeleiro maluco: ensaios sobre corvos e escrivaninhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

RIBEIRO, Adélia Maria Miglievich; ALVES, Dalton José; SAUL, Renata; PEREIRA, Virgílio de Lima. Sociologia e filosofia nas escolas de ensino médio: ausências, permanências e perspectivas. In: HANDFAS, Anita; OLIVEIRA, Luiz Fernandes de (Orgs.). A Sociologia vai à escola: história, ensino e docência. Rio de Janeiro: Ed. Quartet, 2009.

SOUSA FILHO, A. Cultura, ideologia e representações. In: Maria do Rosário de Carvalho; Maria da Conceição Passeggi; Moises Domingos Sobrinho. (Orgs.). Representações sociais: teoria e pesquisa. 1 ed. Mossoró: Fundação Guimarães Duque/Fundação Vingt-un Rosado, 2003, v. 1376, p. 71-82.

AUTORA: LÍVIA FERREIRA

Deixe um comentário